Princípios comuns ICOMOS – TICCIH para a Conservação de Sítios, Estruturas, Áreas e Paisagens do Patrimônio Industrial

«Os Princípios de Dublin»

Adotados pela 17ª Assembleia Geral do ICOMOS em 28 de novembro de 2011

 

PREÂMBULO

Em todo o mundo, diversos sítios, estruturas, complexos, cidades e assentamentos, áreas, paisagens e rotas testemunham as atividades humanas de extração e produção industrial.  Em muitos lugares, esse patrimônio ainda está em operação e a industrialização ainda é um processo ativo com um sentido de continuidade histórica, enquanto que, em outros lugares, oferece evidências arqueológicas de atividades e tecnologias passadas. Ao patrimônio material associado a tecnologias e processos industriais, engenharia, arquitetura e planejamento urbano, soma-se um patrimônio imaterial incorporado às habilidades técnicas, memórias e na vida social dos trabalhadores e de suas comunidades.

O processo global de industrialização observado durante os dois últimos séculos constitui uma grande etapa da história da humanidade, tornando seu patrimônio especialmente importante para o Mundo Contemporâneo.  Os precursores e os estágios iniciais da industrialização podem ser reconhecidos em muitas partes do mundo, remontando-se à antiguidade por meio de sítios ativos ou arqueológicos, e nossa atenção volta-se a qualquer exemplo de tal processo e seu patrimônio. Entretanto, para os propósitos deste conjunto de princípios, o interesse primordial coincide com os conceitos reconhecidos de Revolução Industrial para o Mundo Contemporâneo, marcado pelo desenvolvimento e utilização de processos e tecnologia com respeito a produção, transporte, geração de energia, intercâmbios comerciais e novos padrões sociais e culturais.

O patrimônio industrial é extremamente vulnerável e está em risco constante, sendo frequentemente perdido não só pela falta de conscientização,  documentação, reconhecimento ou proteção, mas também pelas mudanças de tendências econômicas, percepções negativas, questões ambientais ou por sua grande dimensão e complexidade. Contudo, ao estender o ciclo de vida das estruturas existentes e o gasto de energia investido, a conservação do patrimônio industrial construído pode contribuir para alcançar a meta de um desenvolvimento sustentável em nível local, nacional e internacional, afetando tanto os aspectos sociais quanto os aspectos físicos e ambientais do desenvolvimento, devendo ser reconhecida por isso.

Nas últimas décadas, o avanço das pesquisas, a cooperação internacional e interdisciplinar e as iniciativas da comunidade contribuíram consideravelmente para uma melhor valorização do patrimônio industrial e o aumento da colaboração entre os responsáveis legais,  as partes interessadas e os especialistas em preservação. Também contribuíram para esse progresso o desenvolvimento de um corpus de referências e diretrizes internacionais pelo ICOMOS – o Conselho Internacional de Monumentos e Sítios – e a implementação de recomendações internacionais e instrumentos, como a Convenção do Patrimônio Mundial, adotada pela UNESCO em 1972. Em 2003, a Comissão Internacional para a Conservação do Patrimônio Industrial (TICCIH) adotou a Carta de Nizhny Tagil sobre o Patrimônio Industrial, o primeiro texto de referência internacional para orientar a proteção e conservação nesse campo.

Reconhecendo a natureza particular do patrimônio industrial e as questões e ameaças que o afetam, como resultado de sua relação com contextos legais, culturais, ambientais e econômicos contemporâneos, o ICOMOS  e o TICCIH desejam ampliar sua cooperação ao adotarem e promoverem a disseminação do uso dos seguintes Princípios para auxiliar na documentação, proteção, conservação e valorização do patrimônio industrial como parte do patrimônio das sociedades humanas de todo o mundo.  

  1.     Definição: O patrimônio industrial compreende sítios, estruturas, complexos, áreas e paisagens assim como maquinaria, objetos ou documentos relacionados que fornecem evidências dos processos de produção industrial passados ou em desenvolvimento, da extração de matéria-prima, de sua transformação em bens de consumo das infraestruturas de transporte e de energia relacionadas. O patrimônio industrial reflete a profunda conexão entre o ambiente cultural e natural, uma vez que os processos industriais – sejam antigos ou modernos – dependem de fontes naturais de matéria-prima, energia e redes de transporte para produzir e distribuir produtos para outros mercados.  Esse patrimônio contempla tanto os bens materiais – imóveis e móveis – quanto as dimensões intangíveis, tais como o conhecimento técnico, a organização do trabalho e dos trabalhadores e o complexo legado social e cultural que moldou a vida de comunidades e provocou grandes mudanças organizacionais em sociedades inteiras e no mundo em geral.
  2.     Os sítios de patrimônio industrial são muito diversificados em termos de função, projeto e evolução. Muitos são representativos de processos e tecnologias, assim como de condições regionais ou históricas, enquanto que outros constituem  grandes realizações de alcance global. Outros são complexos industriais com operações distribuídas em diferentes lugares ou são sistemas cujos componentes são interdependente frequentemente de tecnologias e períodos históricos diferentes.  O significado e o valor do patrimônio industrial são intrínsecos aos próprios sítios e estruturas, seu material construtivo, componentes, maquinaria e disposição, expressos na paisagem industrial, em documentos textuais e também nos registros intangíveis contidos nas memórias, nas artes e nos costumes.

I ‐ Documentar e entender estruturas, sítios, áreas e paisagens industriais e seus valores

  1.     Pesquisar e documentar estruturas, sítios e paisagens industriais e  maquinaria, equipamento, registros ou aspectos intangíveis relacionados é essencial para a sua identificação, conservação e  reconhecimento de seu significado e valor patrimonial. As habilidades e os conhecimentos humanos envolvidos em antigos processos industriais são recursos extremamente importantes para a conservação e devem ser considerados no processo de avaliação patrimonial.
  2.     A pesquisa e a documentação de sítios e estruturas do patrimônio industrial devem contemplar suas dimensões históricas, tecnológicas e socioeconômicas para oferecer uma base integrada para sua conservação e sua gestão, sendo necessária uma abordagem interdisciplinar sustentada por  pesquisas interdisciplinares e programas educativos para identificar o significado de sítios e estruturas de patrimônio industrial. Diversas fontes de conhecimento e informação devem ser utilizadas, incluindo coleta de campo e registro, investigação histórica e arqueológica, análise de material e paisagem,  história oral e/ou pesquisa em arquivos públicos, de empresas ou privados. A pesquisa e preservação de registros documentais, arquivos de empresas, plantas de edifícios e exemplares de produtos industriais devem ser incentivadas. A avaliação e análise de documentos devem ser realizadas por um especialista da respectiva área industrial para determinar seu significado patrimonial. A participação das comunidades e de outras partes interessadas também é uma parte essencial dessa atividade.
  3.     É necessário um conhecimento profundo da história industrial e socioeconômica de uma área ou país, assim como de suas relações com outras partes do mundo para compreender o significado de sítios ou estruturas de patrimônio industrial. Contextos industriais particulares, estudos tipológicos ou regionais, com um componente comparativo, dirigidos a setores ou tecnologias industriais chave são muito úteis no reconhecimento dos valores patrimoniais inerentes a estruturas, sítios, áreas ou paisagens individuais, devendo ser acessíveis ao público, aos acadêmicos e gestores para buscas e consultas.

II ‐  Assegurar uma efetiva proteção e conservação de estruturas, sítios, áreas e paisagens de patrimônio industrial  

  1.     Políticas apropriadas e medidas legais e administrativas precisam ser adotadas e adequadamente implementadas para proteger e assegurar a conservação de sítios e estruturas de patrimônio industrial, incluindo sua maquinaria e documentos. Essas medidas devem contemplar a estreita relação entre patrimônio industrial, produção industrial e economia, especialmente no que se refere a regras para empresas e investimentos, transações comerciais ou propriedade intelectual, tais como patentes e normas aplicáveis a operações industriais ativas.
  2.     Inventários integrados e listas de estruturas, sítios, áreas e paisagens, sua disposição e objetos, documentos, desenhos e arquivos associados ou patrimônio intangível devem ser desenvolvidos e utilizados como parte dessas políticas efetivas de conservação e gestão e medidas de proteção. Esses bens devem receber um reconhecimento legal, conservação e gestão adequadas para assegurar que seu significado, integridade e autenticidade sejam mantidos. No caso de patrimônio industrial identificado por meio de descoberta fortuita, deve-se conceder uma proteção temporária até que seja possível realizar a pesquisa e documentação patrimonial de modo adequado.  
  3.     No caso de estruturas ou sítios industriais ativos de significado patrimonial, deve-se reconhecer que seu uso e funcionamento contínuo podem conter parte de seu significado patrimonial e oferecer condições adequadas para sua sustentabilidade física e econômica como instalações de produção ou extração ativas.  Suas características técnicas específicas devem ser respeitadas ao se implementar as regulamentações atuais, tais como códigos de construção, exigências ambientais ou estratégias de redução de risco para lidar com ameaças de origem natural ou humana.
  4.     Medidas de proteção devem ser aplicadas a edifícios e seu conteúdo visto que a totalidade do conjunto e sua integridade funcional são especialmente importantes para o significado das estruturas e dos sítios de patrimônio industrial. Seu valor patrimonial pode ser gravemente ameaçado ou reduzido se a maquinaria ou outros componentes importantes forem removidos ou se elementos subsidiários que formam parte do todo forem destruídos. Meios legais e administrativos devem ser desenvolvidos para possibilitar que as autoridades respondam rapidamente ao fechamento de sítios e complexos de patrimônio industrial em operação de modo a evitar a remoção ou destruição de elementos significativos, tais como maquinaria, objetos industriais e documentos relacionados.

III ‐  Conservar e manter estruturas, sítios, áreas e paisagens de patrimônio industrial

  1.  O uso original ou  sua readequação é o modo mais frequente e geralmente mais sustentável de assegurar a conservação de estruturas e sítios de patrimônio industrial. Os novos usos devem respeitar os materiais significativos, componentes e padrões de circulação e atividade.  É necessário um conhecimento especializado para assegurar que o significado patrimonial seja considerado e respeitado na gestão do uso sustentável de estruturas e sítios de patrimônio industrial. As normas de construção, exigências de segurança, normas ambientais ou industriais e outras regulamentações devem ser adequadamente implementadas nas intervenções físicas, levando em consideração as dimensões patrimoniais.  
  2.  Sempre que possível, as intervenções físicas devem ser reversíveis, respeitar o valor temporal  e marcas ou traços significativos. As alterações devem ser documentadas. A reversão a um estado anterior conhecido é aceitável em circunstâncias excepcionais com fins educativos, devendo ser baseada em documentação e pesquisa exaustiva. A desmontagem e realocação apenas são aceitáveis em casos extraordinários, em que necessidades econômicas ou sociais imprescindíveis e objetivamente comprovadas exigem a destruição do sítio.
  3.  Em caso de iminente obsolescência, desativação e/ou adaptação de estruturas e sítios de patrimônio industrial, os processos devem ser registrados, incluindo, por exemplo, onde os componentes têm de ser demolidos e a maquinaria removida. Tanto sua forma material quanto seu funcionamento e localização, como parte dos processos industriais, devem ser exaustivamente documentados. Os relatos orais e/ou escritos de pessoas ligadas aos processos de trabalho também devem ser coletados.  

IV ‐ Apresentar e difundir as dimensões e os valores de estruturas, sítios, áreas e paisagens industriais para aumentar a conscientização pública e empresarial e apoiar treinamentos e pesquisas

  1.  O patrimônio industrial é uma fonte de aprendizado que precisa ser difundida em suas múltiplas dimensões. Ilustra aspectos importantes da história local, nacional e internacional e as interações através dos tempos e das culturas. Demonstra a capacidade criativa relacionada aos avanços científicos e tecnológicos, assim como aos movimentos sociais e artísticos. A conscientização e a compreensão pública e empresarial sobre o patrimônio industrial são meios importantes para o sucesso de sua conservação.  
  2.  Programas, equipamentos e outros recursos – como visitas a sítios ativos de patrimônio industrial e a apresentação de suas operações, relatos e patrimônio intangível associados a sua história, maquinaria e processos industriais, museus industriais ou de cidades e centros de interpretação,  exposições, publicações, websites, itinerários regionais ou transfronteiriços – devem ser desenvolvidos e mantidos como meios de promover a conscientização e a valorização do patrimônio industrial em toda sua riqueza de significados para as sociedades contemporâneas. O ideal é que estejam localizados nos próprios sítios patrimoniais onde se deu o processo de industrialização e nos quais podem ser melhor difundidos. Sempre que possível, as instituições nacionais e internacionais da área de pesquisa e conservação do patrimônio devem ser autorizadas a usá-los como recursos educacionais para o público em geral e para as comunidades de profissionais.

[Tradução para o português-Brasil: Ivanir Azevedo Delvizio, Eduardo Romero de Oliveira]